Os desafios jurídicos para acabar com a violência contra as mulheres

Na América Latina, nos mantemos ocupados traçando estratégias e criando mecanismos para sobreviver. /  Clem Onojeghuo/ Unsplash
Na América Latina, nos mantemos ocupados traçando estratégias e criando mecanismos para sobreviver. /  Clem Onojeghuo/ Unsplash
No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, as histórias de Olimpia Coral, Ingrid Escamilla, Micaela García e Maria da Penha.
Fecha de publicación: 24/11/2021

A violência contra as mulheres é chamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como pandemia paralela e ajudou a manter os holofotes sobre uma dramática realidade da humanidade: a violência perpetrada contra as mulheres, que continua sendo mais ameaçadora do que a Covid-19.

De acordo com a alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, durante o Fórum Econômico da Mulher, a pandemia causou um retrocesso de mais de 18 anos de participação laboral de mulheres na América Latina e no Caribe, considerando que as restrições de lockdown paralisaram as atividades comerciais e de mobilidade, o que impactou principalmente esse grupo altamente vulnerável.

Um dos exemplos mais claros foi o fechamento de escolas em toda região. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), "grande parte do trabalho doméstico não remunerado adicional" afetou "principalmente as mulheres das famílias mais pobres, com até 39% a mais do tempo" gasto nestas tarefas.

Esses parâmetros marcam uma discussão cada vez mais ativa para lidar com a violência estrutural - neste caso, manifestada na esfera econômica - que está intimamente relacionada a outras formas de violência, como física e psicológica. Essas formas, que na América Latina nos mantêm ocupados traçando estratégias e criando mecanismos para sobreviver, são estratégias que também afetam os eixos estruturais do Estado por meio das leis.


Leia também: Brasil quer diminuir violência contra as mulheres com mais penalidades


Leis com nome de mulher

Olimpia Coral, Ingrid Escamilla, Micaela García e Maria da Penha são quatro exemplos de mulheres cujas histórias lançaram as bases para reformas normativas que sensibilizaram a sociedade e que ajudaram a definir bases legais para frear agressões e feminicídios que aumentaram na pandemia.

As leis de Olímpia e Ingrid foram criadas no México; a Lei Micaela na Argentina e a Lei Maria da Penha no Brasil. O que têm em comum é que são iniciativas que buscam otimizar acusações e processos em casos de violência, bem como educar e transformar a sociedade em questões de gênero para prestar assistência necessária, adequada e digna às mulheres vítimas. Quais são os desafios que essas leis enfrentam? Sua existência contribui de forma real para essa luta?

Lei Olimpia e Lei Ingrid

A Lei Olimpia leva o nome de Olimpia Coral, uma jovem mexicana escolhida pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Depois de sofrer de forma pública e virtual pelo vazamento de um vídeo sexual na internet por seu ex-companheiro, em 2014, Coral empreendeu uma luta para tornar visível a discussão e sancionar uma lei que trate de questões de violência digital, o que a fez fundar a Frente Nacional pela Sororidade, por meio da qual conseguiu articular a criação da Lei Olimpia.

Essa lei faz parte das reformas da Lei Geral de Acesso da Mulher a uma Vida Livre de Violência do Código Penal, publicada em junho de 2021 no México. Até agora, 28 estados mexicanos reconhecem a violência digital como crime que prevê punição de até 6 anos de prisão para os agressores.

Para Ana Laura Velázquez Moreno, cofundadora do Círculo Feminista de Análise Jurídica, o que mais chama a atenção nessa iniciativa é o interesse que os cidadãos têm em denunciar.

"O próximo passo é que essas denúncias tenham ao menos alguns avanços processuais significativos".

O relatório Justiça em andamento: O Limbo das Investigações sobre Violência Digital no México, do coletivo Luchadoras, revela uma visão pouco otimista a esse respeito. Até 2020, 2.143 investigações foram abertas para apurar a divulgação de imagens íntimas sem consentimento em 18 estados do país onde as reformas foram aprovadas. No entanto, apenas 24 processos criminais avançaram na Justiça.

Os números mostram que são 1.960 vítimas. Desse total, 83,4% dos casos são de mulheres.

A Lei Ingrid é chamada assim por causa do caso de Ingrid Escamilla, vítima de feminicídio. O crime chamou a atenção sobre a responsabilidade dos funcionários do Judiciário e o tratamento que dão às provas, seja em formato de fotos e/ou vídeos relacionados a atos criminosos, especialmente nos casos de feminicídios. Na época, vazaram os registros da investigação do assassinato da vítima.

Velázquez Moreno analisa essas leis a partir de uma leitura atenta e crítica. Para a jurista, especialista em direitos humanos e gênero, essas reformas correm o risco de ficar no papel depois que elas causaram um chamado à consciência da sociedade mexicana.

“Mais do que a falta de um tipo penal específico ou de uma reforma legislativa, em ambas as leis as autoridades não estavam sensibilizadas, também não houve consciência por parte da sociedade de que isso é um problema”.

Ana Laura Velázquez Moreno, que atuou como secretária técnica da Comissão de Igualdade de Gênero da Câmara dos Deputados do México, não ignora a visibilidade conquistada ou a conscientização, mas sustenta a redundância que pode existir em um marco regulatório que, no caso da Lei Ingrid, já contava com medidas cautelares para punir os servidores públicos que tenham condutas indevidas. “Acredito que a flexibilidade da lei tem que vir de sua interpretação e aplicação”.

Lei de Micaela

Micaela García desapareceu em 1º de abril de 2017 na Argentina. Ela foi encontrada morta e com sinais de estupro após uma semana de buscas. O culpado cometeu o crime poucos dias depois de ser libertado da prisão e entrar em regime de liberdade condicional. Ele tinha acabado de cumprir pena pelo estupro de duas jovens.

Promulgada em janeiro de 2019, a Lei Micaela, promovida pela fundação que leva seu nome, estabelece a obrigação de capacitar em questões de gênero, especialmente em casos de violência, todas as pessoas que exerçam funções públicas, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do México.

Neste 25 de novembro, dia em que se comemora a erradicação da violência contra as mulheres, Andrea Lescano, mãe de Micaela, apresentou, junto com outros grupos, um pedido de informação para averiguar como está o cumprimento da lei no país. A previsão é de que ela receba uma resposta formal em meados de dezembro.

Para Natalia Gherardi, diretora executiva da Equipe Latino-Americana de Justiça e Gênero (ELA), essa lei tem um “objetivo ambicioso” considerando a cultura de discriminação instalada na Argentina. A pandemia é um momento especial para testar o desafio de educar e aumentar a conscientização em todo o sistema.

“Como em muitos países da região, durante os meses de quarentena mais rígida na Argentina todos os crimes caíram, exceto o feminicídio, que teve seu pico em abril de 2020, de acordo com dados divulgados pelo Observatório de Femicídios do Supremo Tribunal de Justiça da Nação. Durante a pandemia, ficaram evidentes os problemas de acesso à Justiça, o importante papel das organizações de mulheres que acompanham quem enfrenta a violência no território, atuando em contextos muito desfavoráveis ​​e com poucos recursos”, afirma Gherardi.

A organização está empenhada na avaliação de impacto para “analisar em que medida a formação contribui efetivamente para transformar as práticas das várias instituições públicas, nos diferentes ramos do Estado”. A organização criou um Guia de Avaliação das capacitações de gênero, Lei Micaela, que permite analisar os resultados e contribuir para a diminuição de casos de violência.

Lei Maria da Penha

Maria da Penha é uma farmacêutica cearense que lutou para que seu ex-marido fosse processado por agredi-la. A Lei Maria da Penha, aprovada pelo Congresso brasileiro em 2005, inova ao regulamentar a violência doméstica e familiar contra a mulher, garantindo por lei o atendimento psicossocial às mulheres e atendimento policial qualificado às vítimas desse tipo de violência.

Desde então o texto da lei foi atualizado. A última mudança aconteceu em julho deste ano, incluindo normas que permitem a expulsão do homem de casa, em situações de risco iminente de violência. No Legislativo, o argumento é de que essas mudanças se concentram muito na punição e pouco na prevenção de crimes cometidos por homens contra mulheres.

A deputada Lídice da Mata (PSB-BA) avalia que houve um aumento de consciência sobre a questão da violência de gênero. “O Congresso, como um todo, em particular a bancada feminina, se voltou para a votação de projetos que buscam melhorar o atendimento às mulheres, combater a violência e adaptar a Lei Maria da Penha a esta realidade”, diz.

“E esta pauta ganhou ainda mais visibilidade durante a pandemia”, ressalta a parlamentar, lembrando que o isolamento agravou os casos de violência contra a mulher, tanto pelo fato de, no isolamento social, elas estarem mais com seus agressores, como pela dificuldade de efetuar as denúncias. “Ainda há muito a ser feito no que se refere à legislação de proteção e defesa das mulheres, pois uma coisa é aprovar as leis; outra é garantir, na prática, sua plena efetivação e aplicabilidade”. 

A deputada considera a Lei Maria da Penha como importante, mas ainda não é totalmente aplicada em todo o país.

A deputada Talíria Petrone (PSOL) defende que a penalização deve vir com maior capacidade no orçamento para adoção de medidas de prevenção, assim como estratégias desde a infância, como campanhas contra a violência de gênero. “Infelizmente a gente está bastante atrás do que seria o ideal em relação a estes temas”, reconhece a deputada. 


Veja também: 15 anos de Lei Maria da Penha: quais os avanços e mudanças?


Punitivismo vs. mudança de perspectiva

Até aqui, os avanços são fruto de um esforço atribuído principalmente a uma cidadania ativa. Para Ana Laura Velázquez Moreno, do Círculo de Análise Jurídica, o ponto fraco dessa luta talvez seja o de enfatizar principalmente o lado punitivo dessas leis.

“O feminismo é um movimento que nasceu anti-sistêmico, por que estamos usando o sistema de justiça mais patriarcal, que é o sistema de justiça criminal como principal bandeira do nosso movimento”.

Para Velázquez Moreno, a oportunidade de mudança buscada pelas várias legislações envolve repensar melhorias em outras áreas do sistema de justiça. A abordagem preventiva e a mensuração das iniciativas implementadas até o momento são necessárias, mas a perspectiva de futuro exige reflexão sobre os esforços de fortalecimento em outras frentes.

“Sim, as questões de prevenção seriam aplicáveis, mas a partir de um bom sistema de justiça do trabalho, um bom sistema de justiça da família, um bom sistema de justiça cívica e repensando todas essas outras áreas do direito que também temos, que podem ser fortalecidas, com as quais trabalhamos antes chegar ao direito penal e pensar mais na prevenção do que na punição ”.

Talvez isso ajude no combate outros tipos de violência - como a econômica mencionada no início desta reportagem - que pode permanecer invisível, algo que a Cepal chama de "um paradoxo da recuperação" diante da pandemia. Fica a sábia afirmação de Raúl García-Buchaca, subsecretário executivo de administração e análise de programas da organização regional, de que precisamos ter “a sociedade do cuidado como horizonte de recuperação transformadora ”.

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