Há mais de um ano se falava da gestação de um novo perfil de advogado que foi batizado com o nome de "advogado líquido"; esta “espécie” nasceu como resultado da reação ao Covid-19 e seus efeitos no negócio, na assessoria, nos clientes e na humanidade, em geral. Como consequência da pandemia e do confinamento a nível global, a velocidade de transformação no setor acelerou exponencialmente, balançando as formas mais tradicionais de aconselhamento jurídico, surgindo uma nova relação com a tecnologia, um novo processo de gestão e fidelização de clientes, novos problemas jurídicos e em última análise, uma mudança importante no que entendemos por contribuição de valor agregado.
É nessa fase que falamos sobre como não só o excelente conhecimento jurídico era importante, mas se mostrou mais do que nunca que ser um especialista técnico não era mais suficiente para ser um bom advogado. Essas qualidades tiveram que ser combinadas com outro conjunto de habilidades muito importantes para agregar valor.
Mudar a forma de trabalhar, usar outras métricas, outras tecnologias, outros critérios de eficiência, outra visão do negócio, outro tratamento do cliente, até outros processos internos... todos aspectos desconhecidos até hoje pela advocacia; ou para ser mais exato, uma parte dessa nova realidade era conhecida da profissão, embora nossa descrença e o conforto que nossa zona segura sempre nos oferecia nos impedisse de explorar esses novos conceitos e ferramentas.
Estamos cientes de que a Covid-19 nos transformou e acelerou a velocidade das mudanças no setor; mesmo assim, passamos por diferentes etapas em tempo recorde, que gostaria de resumir para abordar esse novo perfil de “advogado corajoso” que precisamos:
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A primeira delas chamaremos de etapa de “A negação da realidade”: todos líamos e víamos imagens de um vírus descoberto no continente asiático, que pensávamos não nos afetar. Como consequência do nosso pensamento, mantivemos até ao último dia a nossa forma de trabalhar, de nos relacionarmos com os nossos clientes, de dirigir, gerir e liderar as nossas equipes..., mas logo passamos para a segunda fase: “Quando o Halloween entra nas organizações”, um salto para o vazio, um choque absoluto, o medo do desconhecido, o pânico de uma situação que nunca havíamos enfrentado antes.
Tivemos que enviar todos os nossos profissionais para trabalhar remotamente de um dia para o outro. Tivemos que organizar o trabalho virtual, investir em tecnologia como nunca antes, treinar nossas equipes em tempo recorde, gerenciar e liderar como nunca teríamos pensado, agregar muita transparência e tentar projetar esperança em uma situação absolutamente trágica e complicada.
Foi uma fase em que paramos de "tocar" o cliente, não podíamos vê-lo fisicamente ou comer com ele e a única forma de relacionamento era através de telas e áudio... Entramos então na fase de "A descoberta", a etapa do “Yes we can” e estávamos realmente conscientes do nosso verdadeiro e grande potencial ao sairmos abruptamente da nossa zona de conforto. Tudo isso provocou, como em todos os processos de mudança, uma diferenciação muito clara entre as organizações mais corajosas e as mais contínuas e imóveis.
Devo dizer com grande satisfação que nestas primeiras fases, em geral, os advogados que sempre foram tachados de pouco criativos, pouco inovadores e pouco receptivos a mudanças, superaram em muito o desafio.
Continuamos com a nossa atividade, estudando as novas realidades jurídicas que iam surgindo, descobrindo, explorando, criando e abraçando estas novas formas de trabalho... Aliás, este comentário de satisfação que me permito a título pessoal, é acompanhado pelos dados, pela manutenção do negócio durante 2020 e a nível global, apesar das previsões ruinosas que fizemos no início, os objetivos foram cumpridos e até superados por muitas organizações.
Ao longo deste processo, o "advogado líquido" triunfou, soube reinventar-se, explorar plenamente o conceito de "learnability" (capacidade de aprendizagem), o uso de novas tecnologias, cultivar a resiliência, flexibilidade, adaptação, tomada de decisão, trabalhar em situações especialmente complexas, a criatividade para gerar negócios e se relacionar com clientes, trabalhar e desenvolver empatia com equipes e clientes, explorar o trabalho colaborativo, delegação e confiança nas equipes, descoberta do sistema ágil, liderança... e na minha opinião, acima de tudo essas habilidades há uma que se destacou e se destacará no futuro sobre todas as outras, que é a imaginação; ter sido capaz de imaginar o próximo passo, lutar contra a incerteza, contra a pressão, contra um ambiente turbulento, contra o desânimo ou descrença… Essa imaginação nos deu a chave para prever os múltiplos cenários que enfrentamos e os que teremos que enfrentar em nosso futuro mais próximo.
Como podemos ver, todo esse novo conjunto de habilidades, mal nomeadas, do meu ponto de vista, as soft skills serão a chave em nossa profissão e, mais do que nunca, serão as habilidades mais cobiçadas pelos advogados nos próximos anos.
Chegou a hora da verdade, é agora que temos diante de nós a última fase, o capítulo final, o desfecho de todo esse processo, a etapa do "Grande dilema": conseguimos sobreviver e mostrar a nós mesmos que podemos prestar nossos serviços de forma diferente, para ser mais eficiente.
Criamos novas formas de relacionamento com nossos clientes. Somos capazes de delegar e liderar equipes de forma diferenciada, compartilhando mais informações, proporcionando mais transparência, trabalhando mais em “agile”, usando mais tecnologia e sendo muito mais criativos e inovadores na hora de fornecer soluções jurídicas e ideias de negócios. ..estamos reinventando o valor agregado dos nossos serviços.
Aprendemos mais do que nunca em muito pouco tempo e, como disse no parágrafo anterior, estamos diante da fase mais importante da mudança, a consolidação: a fase dos advogados e das organizações “corajoso”.
É nesta fase, que temos de continuar a transformar-nos e passar de "liquid lawyers" a "brave lawyers", pelo empreendedorismo, pelo intraempreendedorismo, pela tentativa e erro, pelo entusiasmo de mudar o setor, pela forma de prestar assessoria e até mesmo o próprio modelo para fazê-lo.
A pandemia vai passar, espero que muito em breve, mas temos que saber aplicar todo o aprendizado acumulado às nossas organizações e aos nossos advogados, demonstrando assim aos nossos clientes e à sociedade que estamos avançando de mãos dadas, criando novos cenários e novas formas de trabalho no mundo jurídico.
Mas não será tão fácil e tão “automático”, a tentação é muito forte... mantivemos o volume de negócio e a rentabilidade, há muitas vozes que pedem pela volta à normalidade, a volta à etapa pré-covid, a volta ao mundo conhecido e à zona de conforto, mas sem dúvida seria um grande retrocesso depois do que vivemos e aprendemos nos últimos dois anos.
O "advogado corajoso" é uma espécie que não possui uma idade específica, nem mesmo uma experiência específica, o "advogado corajoso" é um ser mágico capaz de combinar todas as qualidades do advogado líquido, agregando mais inovação, mais tecnologia e sistemas de informação, aplicando-os à solução de problemas e mais imaginação para vislumbrar os próximos cenários que teremos que viver.
O "advogado corajoso" é aquele que ousa, aquele que arrisca, aquele que de qualquer ponto da organização é capaz de influenciar, empatizar, liderar, trabalhar em projetos, tirar o melhor de cada pessoa, ser capaz de tomar decisões em ambientes cada vez mais complexos.
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Também estamos lidando com um advogado com visão global, conhecendo não apenas diferentes sistemas jurídicos, mas também trabalhando de forma colaborativa com advogados e profissionais de outros países, sendo um especialista que conhece a empresa e os diferentes setores para poder agregar valor ao cliente.
E mais, o novo “advogado corajoso” será capaz de gerenciar mudanças organizacionais e culturais, liderar e inspirar suas equipes, advogados e não advogados, a alcançar resultados inimagináveis; sendo também um grande gestor de rentabilidade, investimento e crescimento.
Mas não nos enganemos, por mais que tenhamos advogados corajosos, eles não conseguirão realizar nada se as organizações não acompanharem e não estiverem alinhadas com as novas regras do jogo. Durante a pandemia, temos apostado em unidades de trabalho mais autônomas, em horários flexíveis, num uso mais intensivo de tecnologia, em dar ainda mais importância a perfis de advogados com menos experiência mas mais preparados para o mundo digital, muitas vezes achatando as nossas pirâmides e detectando quem pode e quem não deve continuar a tomar decisões... as organizações também precisam ser corajosas e implementar essas mudanças radicais.
Definitivamente, temos que passar de “lawyer centric” para o verdadeiro “client centric”, co-criando com eles, ouvindo de verdade o cliente e estar à disposição das suas necessidades. Para isso, a inovação deve ser constante, colaborativa e inclusiva. E, finalmente, o uso de novos indicadores, análise de dados e eficiência vão mudar radicalmente a forma de trabalhar.
Bem-vindos à fase mais emocionante da história do setor jurídico onde espero coincidir com muitos advogados "híbridos" (centauros e sereias), advogados "líquidos" e, sobretudo, advogados "CORAJOSOS" capazes de escrever o nosso futuro. Espero que você seja um deles!
*Carlos de la Pedraja García-Cosío, diretor corporativo global na Ontier e professor da IE University.
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*Este artigo foi publicado originalmente no ebook "Um futuro digital: O ambiente jurídico e o papel do advogado" pelo Lawit Group. Aqui você pode baixá-lo!
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