Contribuinte não é sonegador

O contribuinte (cidadão ou empresa) não enfrenta uma relação de igualdade perante o fisco./Canva
O contribuinte (cidadão ou empresa) não enfrenta uma relação de igualdade perante o fisco./Canva
Todo cidadão tem direito ao processo administrativo garantido pela Constituição, fato nem sempre evidente para pessoas públicas que deveriam zelar pelo fiel cumprimento do Estado Democrático de Direito
Fecha de publicación: 28/09/2023

O processo administrativo é um direito fundamental do cidadão, está lá bem expresso no art. 5º da Constituição Federal, que em breve completará 35 anos de existência. Para nós, profissionais da área jurídica, isso é bem óbvio, mas aparentemente não o é para algumas pessoas públicas, aquelas, inclusive, que deveriam ser as primeiras a zelar pelo fiel cumprimento do Estado Democrático de Direito. Não fosse por dever ético, o seria por dever constitucional. O artigo 37 da Constituição assim determina: a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).

 

De toda a forma, parece bom que se repita o óbvio. O artigo 5º da Constituição Federal, inserido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), é muito claro ao garantir que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (inciso LIV) e que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inciso LV). 

 

Para os que não tiveram a oportunidade de conhecer o texto constitucional – embora não se possa desconhecer a lei, conforme o artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – é bom lembrar também que se trata de cláusula pétrea, ou seja, considerada tão indispensável que não pode ser alterada nem por emenda constitucional.


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O contribuinte (cidadão ou empresa) não enfrenta uma relação de igualdade perante o fisco. Não é preciso muita reflexão para constatar o que é evidente: por mais poderosa e grande que seja a empresa, o poder público (e não por outro motivo se chama poder) sempre pode mais. Tem mais privilégios, que alguns chamam de prerrogativas. E o que não dizer, então, do pequeno contribuinte, pessoa física ou jurídica?

 

Muito se fala, mas pouco se explica. Desconhecemos se alguns dos nossos grandes expoentes do Poder Executivo, que vão a público acusar os contribuintes de sonegadores ou até detentos (ladrões, presidiários?), para além do fato de desconhecerem a Constituição, já vivenciaram a situação de algum amigo ou familiar ser acusado injustamente por dívida tributária.

 

Quantos patrimônios, quantas vidas foram destruídas por acusações indevidas? Um único agente fiscal tem o poder de lavrar um ato administrativo (auto de infração ou lançamento, que são os nomes técnicos). 

 

E para as empresas, investidores no país – talvez ex-investidores – como justificar uma cobrança maior do que o patrimônio líquido ou maior do que toda a receita de anos? E como justificar uma cobrança fundada em interpretação enviesada da legislação, já criada para suscitar esse tipo de acusação? São esses mesmos agentes que pregam a aproximação entre poder público e o contribuinte? Em confiança?

 

Difícil confiar em quem nos estende a mão em um dia dizendo “quero fazer uma transação porque nós dois podemos estar errados ou certos” e no dia seguinte vai a público dizer que somos sonegadores ou detentos. Ou que nos acusam indevidamente para insistir em uma transação no futuro? É muito injusto negociar sem condições de igualdade e sob coação.


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De forma alguma se defende nesse texto a proteção a sonegadores ou devedores contumazes. Apenas é preciso separar o joio do trigo, e os discursos públicos oportunistas de ocasião não têm servido a essa finalidade.

É exatamente por isso que o sistema se estrutura, como manda a Constituição, com o vínculo do devido processo legal e de todas as garantias pétreas antes mencionadas. O agente público tem, sim, fé pública. O que isso significa? Que ele seja dotado de poderes divinos ou miraculosos para saber a diferença entre o bem e o mal e esteja acima de qualquer escrutínio? Claro que não. A presunção de legitimidade do ato administrativo é uma prerrogativa da Administração Pública para que possa exercer a sua função com autonomia: atender ao interesse público, sem interferências indevidas.

 

Mas justamente porque esse ato unilateral, praticado por uma única pessoa, pode estar errado, existe o devido processo legal administrativo. E o que é isso? É uma das melhores expressões do Estado de Direito: a possibilidade de a Administração rever os próprios atos, como está expresso no art. 53 da Lei nº 9.784/1999 e na súmula 473 do Supremo Tribunal Federal. 

 

É a possibilidade de revisão com o exercício do contraditório e da ampla defesa por aquele que teve sua esfera particular e patrimonial invadida, o contribuinte. Já aprendemos há muitos anos, com nossos professores de direito constitucional e de processo civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e da Pontifícia Universidade de São Paulo, que o que legitima as ações do Estado é a participação daquele para quem essas ações são dirigidas. E o conceito de participação é o pleno exercício do direito de defesa, a efetiva possibilidade de contraditar as acusações.


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São diversas as legislações que regulam o processo administrativo. O que nos chama a atenção é que, especificamente na esfera federal, a legislação em vigor seja o Decreto 70.235/72 (recepcionado pela Constituição Federal como lei federal). Essa legislação vem sendo atualizada ao longo do tempo, mas o paradoxo que nos alarma é o fato de ser uma legislação editada ao tempo da ditadura civil-militar, sendo questionada hoje por autoproclamados democratas.

 

E a legislação original já previa a paridade nos julgamentos. Pontos de vista diferentes, perspectivas diferentes, é algo muito caro à democracia. O que obviamente não significa parcialidade. A interpretação e aplicação do direito nem sempre é tarefa fácil. As visões de mundo nem sempre são as mesmas. Desde que haja o compromisso técnico e ético com a imparcialidade, é extremamente saudável que haja divergência e discussão, para que se chegue à melhor solução.

 

É muito triste e desanimador que, à essa altura – e novamente, às vésperas dos 35 anos da Constituição Federal – muitos não a conheçam. E não a conhecer é violá-la.

 

Se estivessem detentos, os bons contribuintes, que devem ter o direito de defesa, não estariam sendo os artífices da construção e do crescimento deste país, com todas as suas vicissitudes.

 

Contribuinte não é litigante de segunda categoria.

 

*Daniella Zagari e Marco Behrndt são sócios da área tributária do Machado Meyer Advogados. 

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