Ainda no final do ano passado, analistas já anteviam para o Brasil “quatro anos muito difíceis pela frente”, com o necessário aumento da carga tributária para dar conta de um novo arcabouço fiscal capaz de reequilibrar as contas públicas. A área econômica do Governo Lula não tem saído muito desse roteiro, com o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dedicando quase todo o tempo à articulação política para aquela que tem sido repetida como a sua missão: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Assim, ele dedicou os nove primeiros meses de governo à proposta fiscal, aprovada no final de agosto, à reforma tributária, que só deve surtir efeitos para futuros governos, e a medidas legislativas para tributar diferentes tipos de fundos de investimento e agora; com a Medida Provisória 1.185, ás isenções fiscais de ICMS concedidas pelos estados para atrair investimentos.
“Especificamente em relação à MP 1.185, o Governo deve enfrentar resistência, por dois motivos. Primeiro, porque essa MP tende a onerar bastante o setor do agronegócio, que é importante no Congresso. E em segundo lugar, porque ela impacta bastante na efetividade das políticas estaduais de atração de empresas. Em 2017, houve uma alteração legislativa que foi o início de tudo isso, que foi a lei que equiparou todos os tipos de subvenção à subvenção para investimento, que é aquela que poderia deixar de ser tributada. Na época, o presidente Temer vetou esse dispositivo e o Congresso derrubou o veto”, analisa Eduardo Melman Katz, sócio da área de Tributário do Mattos Filho.
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De fato, o presidente Temer vetou dois dispositivos da Lei Complementar 160, que entrou em vigor em 2017, com base no seguinte argumento:
“Os dispositivos violam o disposto no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016 (‘Novo Regime Fiscal’), por não apresentarem o impacto orçamentário e financeiro decorrente da renúncia fiscal. Ademais, no mérito, causam distorções tributárias, ao equiparar as subvenções meramente para custeio às para investimento, desfigurando seu intento inicial, de elevar o investimento econômico, além de representar significativo impacto na arrecadação tributária federal. Por fim, poderia ocorrer resultado inverso ao pretendido pelo projeto, agravando e estimulando a chamada ‘guerra fiscal’ entre os Estados, em vez de mitigá-la."
Todos pela arrecadação
Vale lembrar que Michel Temer era vice-presidente e havia assumido apenas um ano antes, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Seu governo poderia ter ficado marcado pelo ajuste fiscal que propôs, a partir da EC 95. A medida, entretanto, não foi suficiente para reverter a trajetória de aumento da dívida pública do país em relação ao PIB, problema que se agravou com a pandemia, já no Governo Bolsonaro. Assim, marcado por escândalos de corrupção, Temer tinha, em meados de 2017, apenas 3% de aprovação popular, segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) feita pelo Ibope. Ou seja, era um presidente sem qualquer força política.
O Governo Lula, por outro lado, como destacamos em reportagem recente sobre a MP 1.184, que pretende tributar os fundos fechados – o que também já foi rejeitado anteriormente pelo parlamento –, conta com uma ampla base de apoio. E a articulação política não tem se restringido ao parlamento, mas tem se estendido ao Poder Judiciário, como ficou claro, em abril, depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, de forma unânime, no Tema 1.182, que as subvenções para custeio, e não investimento, deveriam sim ser tributadas. Haddad esteve pessoalmente com o ministro relator, Benedito Gonçalves, às vésperas do julgamento. Essa foi uma reviravolta na jurisprudência do STJ que desde a LC 160, vinha consolidando entendimento no sentido oposto.
O tributarista Vinícius Jucá, sócio do Lefosse Advogados, também faz referência ao veto derrubado de Temer e minimiza a menção feita à guerra fiscal, na ocasião. Segundo ele, a LC 160 acabou com a guerra fiscal á medida que validou todos os benefícios fiscais até 2032.
“Por isso, o período de transição da reforma tributária vai até 2032”, explica.
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Ele acredita que, se aprovada, a MP 1.185 pode ter a sua constitucionalidade contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) com base no pacto federativo e no princípio da segurança jurídica, uma vez que muda as regras do jogo, no meio do caminho, para os investidores. O entendimento do governo é de que a subvenção é uma receita que tem que ser tributada por IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. A carga total de impostos, desta forma, chegaria a 43,25% das isenções.
“A diferença de tratamento com a MP é que antes eu não precisava tributar esses benefícios fiscais por nada. Agora a MP manda tributar por tudo, e depois, se forem obedecidos diversos requisitos, o governo devolve um crédito, pela tabela do IRPJ, de até 25%”, resume.
Pressão inflacionária
A tributarista Nataly Santos, sócia do Barreto Lamussi Nunes, concorda com as possíveis inconstitucionalidades apontadas por Jucá e acrescenta que uma simples lei ordinária, forma que será adotada pela MP, caso aprovada pelo Congresso Nacional, pode não ser suficiente para alterar lei complementar. Outro ponto, contudo, é foco de preocupação para Eduardo Melman Katz: o impacto da MP na inflação.
“Essa conta tende a ser muito cara, inclusive para consumo de produtos básicos. Hoje, o varejo alimentar é fortemente beneficiado por benefícios que vão acbar no novo regime. Isso vai ter um impacto, sem dúvida nenhuma, no preço de alimentos básicos para a população. Alguém vai pagar a conta, e é o consumidor; e muitas vezes isso impacta também em setores que já estão em situação difícil, como o varejo, por exemplo”, avalia.
Quase 30 anos atrás o Brasil conseguiu controlar a inflação abordando-a como um mal administrado conflito distributivo pelo PIB. Enquanto o estado, as empresas e os trabalhadores exigiam fatias cada vez maiores do PIB, era necessário cada vez mais moeda em circulação. A saída foi conter os gastos do estado e não reajustar os salários. O risco que se corre ao apostar todas as fichas no aumento de arrecadação é que isso cause ainda mais pressão inflacionária a uma economia já desequilibrada mundialmente pelas medidas de combate à pandemia.
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Talvez esse seja um dos motivos por que o novo arcabouço fiscal ainda desperta a desconfiança dos agentes econômicos. Isso pode ser medido, por exemplo, pelo Boletim Focus, do Banco Central. Na edição de 15 de setembro, a expectativa média do mercado era de déficits em todos os anos, ainda que o Ministro Haddad anuncie que a meta é zerar o déficit a partir de 2024. Até o final do ano que vem, portanto, o governo deve seguir mesmo com esse foco no aumento da arrecadação. Com a MP 1.185, a expectativa oficial é de arrecadar até R$ 137 bilhões em quatro anos.
Resistência dos contribuintes
O valor não considera a possível arrecadação sobre as subvenções de anos anteriores, mas pode subestimar a resistência dos contribuintes. Para o sócio do Mattos Filho, a judicialização do tema, que se arrastou pela última década e resistiu mesmo à tentativa de pacificação da LC 160, deve se intensificar, se a MP 1.185 for convertida em lei. “A gente entende que essa MP, se aprovada, não deveria afastar os efeitos de decisões que hoje os contribuintes já têm afastando a tributação especialmente dos créditos presumidos”, destaca, em outra frente de possíveis questionamentos.
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