Brasil investe em carne cultivada em laboratório, de olho na regulação

JBS, maior produtora de proteína animal do mundo está investindo mais de US$ 60 milhões para desenvolver carne cultivada, em Santa Catarina./ Bio Tech Foods - website.
JBS, maior produtora de proteína animal do mundo está investindo mais de US$ 60 milhões para desenvolver carne cultivada, em Santa Catarina./ Bio Tech Foods - website.
Enquanto startup australiana desenvolve almôndega de mamute, Cingapura já vende frango e a JBS anuncia investimentos de mais de US$ 60 milhões em centro de pesquisa de carne cultivada, Projeto de Lei 4616/23 quer proibir da pesquisa à venda, no país.
Fecha de publicación: 24/10/2023

Imagine saborear uma almôndega de mamute, animal que era uma das principais fontes de proteína do ser humano pré-histórico, mas que está extinto há mais de 5 mil anos. Pois uma startup australiana criou esse produto como demonstração do potencial da carne cultivada em laboratório, sem o abate de animais. Trata-se de um mercado que, no Brasil, já despertou o interesse da JBS. Maior produtora de proteína animal do mundo, a empresa está investindo mais de US$ 60 milhões no JBS Biotech Innovation Center, para desenvolver carne cultivada, em Santa Catarina. Mas o Projeto de Lei 4.616/23 quer proibir da pesquisa à venda de carne cultivada no país.

“Cingapura foi o primeiro país a aprovar carne cultivada para venda comercial, em 2020. Recentemente, uma empresa de carne cultivada com sede nos EUA recebeu uma carta de ‘sem perguntas’ da FDA, indicando que os reguladores não encontraram nada de inseguro no frango cultivado que ela produz. As empresas de carne cultivada estão trabalhando com reguladores na Austrália e na Nova Zelândia para obter a aprovação de um produto antes do final de 2023”, registra a Vow Food, desenvolvedora da almôndega de mamute, em seu website. De outro lado, países como Uruguai e Itália também debatem a proibição da carne cultivada.

Os investimentos em carne cultivada começaram com US$ 5 milhões em 2016, até passarem de US$ 1,3 bilhão em 2021 e recuarem para cerca de US$ 900 milhões no ano passado. Apesar da euforia com as food techs, setor em que as startups de carne cultivada estão inseridas, esse recuo nos investimentos foi em linha com o que se deu em toda indústria de venture capital.


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Segundo a Crunchbase Data, o total de investimentos em startups caiu de US$ 681 bilhões para US$ 445 bilhões, de 2021 para 2022. A alta na inflação e as incertezas com a economia mundial diante da guerra na Ucrânia estiveram entre as principais causas apontadas por analistas.

Carne cultivada x plant-based

A elevação no custo de vida também foi a principal justificativa apresentada pela Vivera para a queda nas vendas e no faturamento de 2022. A empresa é o terceiro maior fabricante do mundo de produtos plant-based outro segmento das food techs que usa alternativas de proteína vegetal no lugar da animal. A empresa foi adquirida pela JBS em 2021, conforme noticiado aqui pela LexLatin. No ano passado, a empresa alegou que concentraria seus investimentos em plant-based na Europa e no Brasil, e vendeu a Planterra Foods, nos EUA. Assim, depois de uma onda de investimentos inclusive em diversos países da América Latina, como monitorado pela LexLatin, por exemplo, no Chile, com a NotCo, e na Colômbia, com a Upfield, o segmento de plant-based parece perder parte do brilho justamente para o de carne cultivada. Tanto que os investimentos em carne cultivada passaram, em 2022, pela primeira vez, os de plant-based.

Ainda assim, pioneiro na regulação dos transgênicos, com a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), o Brasil entrou na lista dos que discutem a proibição da carne cultivada. A Lei de Biossegurança estabeleceu padrões e mecanismos de fiscalização para estimular o avanço científico na área de biotecnologia. Depois de 18 anos, ela acaba de ter a sua constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.526, que vinha sendo discutida por todo esse tempo.

Sócio do Nascimento e Mourão Advogados, João Emmanuel Cordeiro Lima representou a Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI) na ADI 3.526. Ele confessa que foi surpreendido com o PL que pretende proibir a carne cultivada, até por ver o segmento ainda como algo muito embrionário.

“Essa iniciativa de tentar fechar a porta até antes de termos qualquer efeito prático na economia, surpreende. O PL não só veda a pesquisa, como criminaliza. A nossa avaliação é que esse projeto, se aprovado, estaria fadado a ter a sua inconstitucionalidade reconhecida. No artigo 5º da Constituição Federal, inciso IX, temos de previsão muito clara de que a regra em matéria de desenvolvimento de pesquisa é a liberdade. E como direito fundamental, só poderiam eventualmente restringi-lo para salvaguardar outro direito fundamental. A gente percebe que a intenção é de proteger o mercado. É uma visão míope, que não vai impedir o resto do mundo de pesquisar”, analisa.


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Regulação que afasta investimentos

Vice-presidente de Políticas Públicas do The Good Food Institute (GFI), organização não-governamental que trabalha para acelerar a inovação do setor de proteínas alternativas, Alexandre Cabral revela que o PL tem tirado o seu  sono:

“Não vemos outra coisa nas últimas duas semanas. Há interesse de uma parte do agronegócio brasileiro, especialmente dos pecuaristas, em que se enfraqueça o setor de proteínas alternativas e o de carne cultivada. Todo PL no Brasil leva um período longo de tramitação, que vai de um ano a uma vida inteira. Trabalhamos para que esse não prospere. Esse PL é um entrave para a inovação, e não podemos esquecer que o agro é o que é por conta de muita inovação, boa parte trazida pela Embrapa. Se proíbe no Brasil, a JBS não vai cancelar o investimento, ela simplesmente vai fazer isso em outro país.”

De fato, a JBS já atua no setor de carne cultivada em outros países, notadamente na Espanha, onde está construindo, na cidade de San Sebastián, a maior fábrica de proteína bovina cultivada do mundo. Esse investimento está sendo feito por intermédio da Biotech Foods, da qual a JBS é acionista controladora, com 51% de participação. Ao custo de US$ 41 milhões, a empresa pretende produzir até 4 mil toneladas anuais. A BRF também já investiu em uma startup israelense, a Aleph Farms.

Ao contrário da “carne” vegetal, a carne cultivada é carne de verdade, só que produzida a partir de células animais. O processo começa com uma biópsia que geralmente é retirada de um animal vivo. As células de uma biópsia podem ser cultivadas em volumes ilimitados de carne. Para isso, uma amostra dessas células é colocada em um meio de crescimento que fornece os nutrientes necessários para a multiplicação das células. Posteriormente, essas culturas celulares são colocadas em um biorreator, em que as células se multiplicam, exatamente como fariam em um animal. A fábrica se parece com uma cervejaria, com fileiras de grandes tanques de aço inoxidável.

Frederico Cunha, presidente da Comissão de Direito Agroalimentar e Nutricional da OAB/DF, acredita que o PL 4.616/23 fira “frontalmente” o princípio da livre iniciativa, “tanto o inciso IV do artigo 1º, quanto o artigo 170 da Constituição Federal”.


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Autor do projeto, o deputado Tião Medeiros não esconde que uma das principais preocupações que tem é a de proteger os pecuaristas. Ele reconhece que “a carne cultivada em laboratório tem sido saudada como a próxima grande revolução alimentar”, mas ressalva: “Para países com grandes rebanhos de gado, como o Brasil, essa ‘revolução’ pode ser mais uma ameaça do que uma oportunidade.”

Proteção à saúde e ao meio ambiente

Ele também argumenta que “quanto à saúde humana, ainda há muitas incógnitas sobre os efeitos a longo prazo do consumo de carne cultivada”. Realmente, essa é uma preocupação dos reguladores dos países que já se debruçam sobre a questão, e também dos próprios produtores, tanto que a carne de mamute não tem previsão de chegar ao mercado.

“Como estamos lidando com uma proteína extinta, levará algum tempo até que possamos garantir que a carne de mamute é segura e saudável”, justifica Vow Food.

Comer carnes de animais criadas à moda antiga, entretanto, provoca alguns danos à saúde já amplamente pesquisados. Segundo o GFI, em 2019, 1,27 milhão de pessoas morreram devido a resistência antimicrobiana adquirida pelo consumo de carne, e as estimativas para 2050 são de 10 milhões de mortes. Isso porque os antibióticos com que os animais são tratados estenderiam seus efeitos às pessoas que os consomem, gerando maior resistência nas bactérias.

Tião Medeiros, contudo, também chamou atenção para o impacto ambiental:

“Embora a carne cultivada seja frequentemente promovida como uma alternativa mais ‘verde’, ainda está fora de conhecimento seu verdadeiro impacto ambiental. Alguns estudos sugerem que a produção de carne cultivada pode ser ainda mais prejudicial ao meio ambiente do que a pecuária tradicional.”


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Nesse ponto, porém, os dados parecem contradizer ainda mais a justificativa do PL. A produção de proteína animal gera 17% das emissões de CO2. Do total de proteínas produzidas no Brasil, entre animais e vegetais, só 16% são usados para alimentação humana, enquanto 80% servem apenas como ração. São necessários 165 m2 de pasto para produzir 1 kg de carne, o que equivale a 6,5 km2 de pasto por ano, por brasileiro. Daí que 80% das áreas desmatadas da Amazônia são usadas para pasto. Do total da área terrestre do planeta, 30% são ocupadas pela pecuária. Das terras agrícolas, 70% são usadas para produzir ração para os animais. Do consumo global de água, 70% são destinados ao agro. Isso tudo para só aproveitar 36% na forma de carne em relação ao peso total de um bovino.

Jean Sasson, do Lima Feigelson Advogados, calcula que, quando se promovem as carnes cultivadas em laboratório, em última análise, também se está estimulando menos desmatamento. “Por outro lado, o PL insere um dispositivo na Lei 11.105/2005, tipificando uma conduta administrativa ilegal, colocando multa. A principal lei sobre isso não proíbe esse tipo de atividade. Então, precisa de um PL para inserir isso em uma lei que traz boas práticas internacionais e estimula a pesquisa científica?”, questiona.

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