O STJ (Superior Tribunal de Justiça) autorizou, pela primeira vez, que uma decisão estrangeira a respeito dos chamados “danos punitivos” (ou “punitive damages”, em inglês) fosse validada no Brasil, para fins de execução. O dispositivo, que não existe na legislação brasileira, é o centro de uma controversa jurisprudência mundo afora – e que agora conta com uma porta de entrada para o Brasil.
Por unanimidade, a Corte Especial do STJ entendeu que a decisão da justiça estrangeira, por mais que se baseie em princípios inexistentes no Brasil, não viola a ordem pública nacional se aplicada pelo sistema de Justiça local. A decisão, tomada em fevereiro, não foi acolhida sem muitas dúvidas dos ministros da corte.
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Na definição dos países da chamada “Common Law” – como são chamados os direitos criados por meio das jurisprudências dos tribunais, comuns na formação de países anglófonos – os “punitive damages” são uma espécie de pena extra dada a uma das partes por alguma conduta registrada no andamento do processo.
Um caso mundialmente famoso de danos punitivos também indicou como a legislação é aplicada – e como ela pode gerar distorções: em 1994, uma senhora de 79 anos se queimou ao comprar um café de 49 cents no McDonalds na cidade norte-americana de Albuquerque.
Como a empresa de alimentação se recusou a pagar os tratamentos médicos de 20 mil dólares, a justiça local aplicou danos punitivos de US $2,7 milhões (mais de US $5 milhões em valores atuais) à empresa. O caso acabou sendo resolvido entre as partes, mas explicitou como o remédio jurídico pode ser danoso.
Foi o que aconteceu com o caso analisado no STJ. Uma empresa canadense contratou um biofarmacêutico norte-americano, considerado um nome de referência no ramo de biossimilares, para um trabalho em 2012. O contrato entre ambos acabou rescindido com a empresa acusando o profissional de descumprir cláusulas contratuais de exclusividade na prestação do serviço. O caso foi ao tribunal local e a empresa conseguiu o que queria: como punitive damages, o consultor foi obrigado a pagar todo o salário recebido, de 300 mil euros, como danos punitivos à empresa.
No momento da decisão, no entanto, o biofarmacêutico estava em um emprego no Brasil, residindo no estado de São Paulo – motivo pelo qual a empresa ingressou com um pedido de HDE (Homologação de Decisão Estrangeira) ao STJ.
O julgamento ocorreu em fevereiro. Nele, o advogado do consultor indicou que o pedido da empresa canadense possuía três grandes falhas: a principal é a de que a decisão sobre punitive damages não estaria ligada à legislação brasileira, uma vez que o ordenamento brasileiro permite apenas a compensação proporcional a algum dano causado pela parte, e não uma punição exemplar.
Havia também o fato de que a sentença estrangeira seria baseada em prova obtidas ilegalmente pela empresa, e que a decisão internacional não havia transitado em julgado. “A sentença estrangeira é clara e diz que ele [o consultor] entregou os serviços à companhia sem problemas, mas ainda sim ele é condenado [pela Justiça canadense] a pagar 100% do valor pago pelo seu trabalho”, disse Paulo Nasser, o advogado do consultor, durante sustentação oral. “Os ‘punitive damages’ são incompatíveis com o sistema brasileiro.”
A corte especial – formada pelos 15 ministros mais antigos – acolheu por unanimidade o argumento do relator, ministro Raul Araújo, para quem a aplicação da sentença no Brasil não iria ferir a ordem pública nacional. Apesar de unânime, os ministros ponderaram sobre a abertura de precedente.
“Se o ‘dano punitivo’ não é reconhecido pela lei brasileira, essa desconexão é ligada a uma violação da ordem pública interna no Brasil”, disse o ministro Herman Benjamin. Apesar de ser favorável, ele concluiu que a corte estava “dando uma permissão incompatível ao legislador estrangeiro no sistema brasileiro.”
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Erico Bomfim de Carvalho, sócio na Advocacia Velloso e mestre em Direito pela Columbia Law School, diz que esta é uma decisão liberal – mas correta – da corte: “De acordo com a lei brasileira, uma sentença estrangeira só não pode ser validada se ela ofender a soberania nacional, a dignidade humana e a ordem pública”, disse o advogado. “E estes são conceitos abstratos, que podem ser adaptados a cada caso.”
Essa é uma excepcionalidade na história da corte – mas como o sistema de justiça brasileiro tratará os danos punitivos só ficará claro quando o STJ publicar o acórdão do caso. Isso, no entanto, ainda deve demorar, já que no final de março os ministros aceitaram algumas ponderações extras que Araújo poderá fazer ao caso. Érico indica que agora, a corte tem a possibilidade de promover uma jurisprudência sobre o tema. “Temos apenas que ter algum norte, sobre a visão do STJ, no voto do relator”, concluiu.
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