De acordo com George Beaton, consultor e autor do livro “NewLaw New Rules - A conversation about the future of the legal services industry” (2013), o primeiro registro do termo NewLaw é encontrado em um artigo de Michael Huber de 2009, mas foi Eric Ching que o dimensionou, em 2013, como uma nova forma de prestação de serviços jurídicos em oposição aos escritórios tradicionais ou Big Law (ou como o consultor de escritórios de advocacia John Chisholm chama, Old Law).
Ilina Rejeva, baseada nas conclusões de Beaton preparou o seguinte quadro que traduzimos para o português no qual são descritas as principais características NewLaw em oposição à Big Law:
Assim como surgiu um Uber no setor de táxis e um Airbnb no setor hoteleiro, NewLaw tornou-se a grande promessa de tirar a naftalina da lei. Quase 10 anos se passaram desde o surgimento do termo NewLaw e, embora tenha havido avanços importantes, bem como o surgimento de novos players no setor jurídico, ainda não vemos mudanças estruturais profundas.
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Continuo acreditando no “NewLaw” como uma categoria que descreve as mudanças necessárias no modelo de negócios de serviços jurídicos impulsionados, entre outras coisas, por processos e tecnologia. Acredito também que essa categorização tem sido muito útil para projetar o caminho futuro do direito. No entanto, me parece necessário construir sobre ela, para complementá-la, alguns elementos qualitativos que se encontram no seio da indústria jurídica, ou seja, nas pessoas que a compõem.
Nessa linha, quero propor uma evolução do NewLaw para o GoodLaw como um conjunto de componentes qualitativos cujo cumprimento estabelece as bases para o exercício do direito de forma consciente, sustentável e humana. A GoodLaw não pretende invalidar a NewLaw.
Estas são algumas das características fundamentais que descrevem a nova categoria que proponho:
- Contar com um propósito genuíno e coerente. Conheço pouquíssimos exemplos de escritórios de advocacia com uma cultura organizacional sólida baseada em um propósito claramente delimitado e internalizado por seus membros, que vai além da rentabilidade e do "copiar e colar" de alguma frase famosa e inspiradora em seu site. A essência do crescimento do setor continua a estar intimamente associada ao dimensionamento econômico de um negócio ou à expansão de áreas de atuação, através de fusões ou integração de novas equipes de advogados ou, no caso de network firms, através da “conquista” de escritórios em diferentes países, como se fosse uma partida de Risk. Tamanho, status e poder continuam a ser o leitmotiv da advocacia privada e é algo que, na minha opinião, tem que mudar. Temos que devolver ao direito sua vocação original de serviço e potencializar seu impacto social direto, algo que, para a tranquilidade dos mais conservadores, não significa de forma alguma deixar de ser lucrativo. Pelo contrário, significa adaptar-se a uma nova realidade global. Do propósito pendem uma série de valores e princípios inegociáveis que se tornam o DNA, o combustível que dá partida no motor cultural da organização.
- Adotar uma abordagem de triplo impacto para fundamentar o propósito. A forma de fazer negócios mudou. O papel da empresa privada no século XXI não se limita à geração de lucros para os seus acionistas, mas evoluiu para uma abordagem de retribuição à sociedade que permite a existência da empresa no que se convencionou chamar de “capitalismo consciente”. A empresa privada pode ser um agente de mudança social gerando um impacto positivo direto no meio ambiente e na inclusão social. No caso dos escritórios de advocacia, não me refiro apenas ao “trabalho probono” ou alguma atividade bem intencionada de responsabilidade social, mas a ferramentas que permitem que o escritório tenha um impacto positivo contínuo e permanente na sociedade. Refiro-me especificamente à possibilidade de uma firma ser certificada como BCorp ou usufruir do regime jurídico de Sociedade de Benefício e Interesse Coletivo (BIC). Ambas as opções permitem que o impacto social direto seja convertido em algo mensurável e auditável por terceiros, fundamentando o propósito e a cultura do escritório em ações concretas. É muito sintomático que os escritórios de advocacia BIC sejam contados em nível global ou tenham sido certificados como empresas B.
- Ter um compromisso real e vivo com a ética e a conformidade regulatória. Durante séculos fomos educados na premissa de que os advogados exercem uma “profissão liberal”, o que se resume bem a que tenhamos um nível de autonomia suficiente que nos torne intocáveis e estejamos acima do bem e do mal. Não precisamos (e não devemos precisar) mais do que nosso diploma de Direito para exercer essa premissa. Essa interpretação é mais do que preocupante e desencadeia as seguintes questões: Por que sempre há profissionais do direito envolvidos por trás de escândalos de corrupção? O que estamos fazendo além da "verificação de conflitos" para sermos consistentes com a ética e a conformidade regulatória? Contratamos nossas equipes de acordo com as normas trabalhistas vigentes? Possuímos sistemas anticorrupção eficazes? Temos mecanismos de estabelecimento de nossos honorários ajustados à ética? O desafio aqui é simples: romper com o famoso ditado “casa de ferreiro espeto de pau” e implementar “practice what you preach” em todos os níveis, devolvendo a ética ao direito.
- Equilíbrio e bem-estar na equipe é a maior prioridade. As firmas tradicionais parecem ter esquecido que a essência de sua atividade profissional está em suas equipes de trabalho e não necessariamente em seus clientes e no faturamento que geram. Eu não terminaria de escrever esta nota se começasse a listar o número de estudos globais que relatam altos níveis de depressão e deterioração mental na advocacia, derivados de modelos de negócios que priorizam a lucratividade sobre a saúde física e mental da equipe e daquele insano ritmo de trabalho. É alarmante que em pleno século XXI ser “workaholic” continue a ser valorizado positivamente como sinônimo de sucesso na profissão. É necessário que as firmas, independentemente de seu porte, construam equipes de gestão humana compostas por profissionais da área, que tenham autonomia suficiente para tomar decisões acima do conselho de sócios. A cultura e o ambiente de trabalho dentro de uma abordagem de management humanista devem ser prioridade dos novos modelos de estudos jurídicos.
- Equidade, paridade e inclusão no centro da firma. Infelizmente, continuamos a ser uma profissão altamente machista que não promove ou abraça genuína e autenticamente a inclusão e a diversidade. Há muito pinkwashing e impactwashing no setor, o que é lamentável e não pode ser resolvido aparecendo em rankings que premiam a “diversidade” ou pintando o logotipo do arco-íris da firma todo mês de junho. Acredito que a firma do futuro deve oferecer oportunidades de forma proativa a todos, e isso se reflete simplesmente olhando para a estrutura organizacional da firma e suas ações concretas. Como diriam os anglo-saxões em termos simples: “Walk the talk”.
- Acolher e implementar a cidadania corporativa ou o ativismo empresarial. Sonho com o fim da indiferença dos escritórios de advocacia diante das situações sociais, políticas, econômicas e ambientais em que vivemos. Estamos em um mundo em que empresas que só vigiam seus bolsos e se mantêm distantes, tímidas e cautelosas com a realidade que as cerca serão substituídas por aquelas que assumem voz e lutam pelas causas em que acreditam. Os advogados não devem agir e se manifestar somente quando o exercício da advocacia for afetado, devem ter uma voz crítica permanente da atividade política, social e econômica do mundo e não viver convenientemente de costas. Temos muito a contribuir com nosso trabalho diário na solução de problemas globais. O exposto não é idealista, vimos recentemente como algumas empresas globais tomaram posições firmes contra a invasão russa da Ucrânia ou contra outras regulamentações que restringiam as liberdades individuais, mas ainda é incipiente. Precisamos muito mais disso.
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Deixe-me ser ainda mais específico. A implementação do anterior contribuiria para erradicar algumas situações nas firmas, tais como:
● Advogadas demitidas ou "convidadas à sair" por optarem pela maternidade.
● Advogada ou advogados acusados de assédio sexual convidados a “sair pela porta grande” dos escritórios com convenientes “acordos de confidencialidade”. Em outros casos, eles permanecem disfarçados devido à sua alta produtividade ou porque ocupam posições privilegiadas na firma.
● Escritórios que contratam suas equipes de advogadas ou advogados em esquemas não alinhados com as normas trabalhistas vigentes ou que aceitam acordos com clientes em desacordo com a ética profissional.
● Advogada e advogados restringidos de poder trabalhar remotamente sem qualquer justificativa.
● Aumentos injustificados na demanda por horas faturáveis com consequências aterrorizantes na deterioração e qualidade de vida dos advogados (também conhecido como “burnout”)
● Advogadas e advogados da comunidade LGTBIQ+ que sofrem discriminação e não conseguem vagas em escritórios de advocacia.
Parafraseando a La Lucha, uma incubadora de empreendedorismo social peruana: precisamos criar a nova geração de advogados “que o planeta contrataria”. Precisamos construir firmas que, embora amparadas em processos e tecnologia, e visem a eficiência (NewLaw), sejam conscientes, sustentáveis, humanas e retribuam à sociedade que as permite existir (GoodLaw). Precisamos de advogados que, como diria Nicolas Muñoz, fundador da Ulpik – um empreendimento jurídico equatoriana disruptivo – sejam uma mistura entre Google e Patagônia.
*Oscar Montezuma, sócio fundador da Niubox. Lima, Peru. E-mail: [email protected]
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