A chegada de novas tecnologias e o aprimoramento das já existentes é um assunto que está no centro dos debates para os profissionais da Propriedade Intelectual no Brasil e em todo o mundo. A discussão gira em torno das patentes essenciais, algo que é considerado pelos especialistas da área como a “espinha dorsal da interoperabilidade global em telecomunicações”.
Um exemplo importante é a compatibilidade da tecnologia da chamada “internet das coisas”: se você deseja que seu dispositivo "converse" em 5G ele precisará estar alinhado com as tecnologias protegidas por essas patentes. Pense na liberdade de viajar por diferentes países mantendo a conectividade contínua do seu smartphone.
Mas a discussão vai além da mera comunicação. Ela permeia a essência da economia global, impactando a produção, custos e acessibilidade de novas tecnologias. Para o consumidor, traduz-se na tranquilidade de saber que, ao optar por um produto, ele será compatível e funcional, independentemente do fabricante.
Sugestão: Alejandro Cantú, da América Móvil: a reforma das telecomunicações e a nova configuração do setor
De acordo com especialistas ouvidos pela LexLatin, a consolidação da implementação do 5G em todo país traz novos desafios jurídicos quando o assunto é a validação das patentes essenciais. “Elas são vitais para criar um ambiente competitivo que favoreça o consumidor. Com padrões claros, novos players podem ingressar no mercado, gerando uma vasta gama de opções para os consumidores”, afirma Ana Carolina Camino Moreira, do Carlos Nogueira Advogados.
Para Moreira, em meio a todos os benefícios inerentes às patentes essenciais, é fundamental tratar sua gestão com discernimento e equilíbrio. “A inovação é um motor potente, mas deve ser canalizada para promover acessibilidade e equidade. Devemos garantir que a proteção das patentes não se torne um obstáculo para a inovação, mas sim um instrumento para ampliar horizontes e enriquecer a tapeçaria tecnológica global”, diz.
Viviane Trojan, sócia do escritório Kasznar Leonardos e uma das heads da área de Contencioso Estratégico, explica que é a defesa da propriedade intelectual das patentes essenciais que financia a evolução tecnológica. “No caso do 5G, por exemplo, é o licenciamento das patentes que cobrem esse padrão que já está permitindo que estudos para 6G aconteçam. E, no passado, foi justamente o licenciamento do 4G que possibilitou que hoje o 5G exista e esteja sendo implementado no Brasil”, avalia.
Veja também: A concessão de patentes para o setor de telecom no Brasil
Como são feitas as normas para patentes essenciais
As normas são estabelecidas por entidades encarregadas da criação de padrões e podem variar, mas a essência das patentes essenciais reside no fato de que as tecnologias por elas protegidas são indispensáveis para a efetivação de um padrão tecnológico. Essa acessibilidade pode ser facilmente verificada, observando a disseminação global de padrões amplamente utilizados e reconhecidos: além do 5G, outros exemplos são os padrões USB e PDF.
No Brasil, a primeira decisão sobre uma patente essencial aconteceu em 2015, quando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, permitiu que a Ericsson recorresse a medidas judiciais para evitar que terceiros, no caso a TCT, utilizassem sua tecnologia patenteada relacionada ao 3G sem pagar os devidos royalties em termos justos e razoáveis. A justificativa para essa decisão foi que a TCT teria supostamente agido de má-fé ao utilizar as tecnologias patenteadas da Ericsson por um longo período sem negociar adequadamente o pagamento dos royalties e, posteriormente, oferecendo condições desproporcionais.
Outro caso importante envolvendo patentes essenciais ocorreu na disputa entre as empresas ZTE e Vringo. A Vringo adquiriu várias patentes essenciais que cobriam tecnologias 2G, 3G e 4G da Nokia, reconhecendo sua obrigação de respeitar o princípio FRAND. No entanto, a empresa ZTE continuou a fabricar equipamentos que infringiam essas patentes sem obter a devida licença. Como resultado, a ZTE foi impedida de importar e vender seus equipamentos para operadoras brasileiras.
“A proteção adequada incentiva a pesquisa e a inovação, enquanto o licenciamento adequado promove a concorrência, previne práticas anticompetitivas e garante que os consumidores tenham acesso a tecnologias avançadas a preços justos. A discussão de proteger patentes garante que pessoas continuem motivadas inventando coisas novas, já que sabem que suas ideias estarão protegidas”, analisa Mozar Carvalho, sócio do escritório Machado de Carvalho Advocacia.
A entrada de novos concorrentes no mercado e a garantia de um amplo alcance ao público consumidor possibilitam a oferta de produtos com funcionalidades cada vez mais robustas e preços cada vez mais acessíveis. Em um comunicado, a divisão antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos destaca que "o processo de estabelecimento de padrões pode intensificar a competição entre tecnologias que serão incorporadas em padrões, beneficiando os consumidores com maior variedade de funcionalidades ou preços mais competitivos (e, às vezes, ambos)."
Leia mais: Crescem registros de patentes de nanotecnologia no Brasil, principalmente na área médica
No Brasil, assim como em outras nações, um pedido de patente essencial segue os mesmos critérios de patenteabilidade que qualquer outro tipo de patente. O processo também está sujeito às mesmas exigências e procedimentos de concessão pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), sem qualquer tratamento diferenciado. Portanto, o fato de uma patente ser declarada como essencial para um padrão tecnológico não implica benefícios ou restrições especiais em seus direitos.
Essa questão foi enfatizada em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Durante o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n.º 5529, que trata da constitucionalidade do prazo de vigência das patentes de invenção e modelos de utilidade no país. O STF observou que a proteção concedida por uma patente de invenção representa um "privilégio excepcional garantido pela Constituição e plenamente justificável, dada a sua função no estímulo à inovação e ao progresso tecnológico, como mencionado anteriormente."
A seleção das tecnologias que serão incorporadas a uma especificação técnica de um padrão geralmente é realizada por meio de um processo de escolha que considera os benefícios proporcionados tanto aos fabricantes quanto aos consumidores.
Pode te interessar: Qual o papel da Propriedade Intelectual na defesa dos direitos relacionados aos recursos genéticos?
A polêmica sobre o pagamento de royalties
Uma das questões controversas na negociação de licenças diz respeito ao valor dos royalties a serem pagos. Isso ocorre porque nem todos os licenciantes contribuem de forma igual para o desenvolvimento do padrão tecnológico. Alguns argumentam que os licenciantes que desempenharam um papel mais significativo na definição do padrão devem receber royalties mais substanciais do que outros.
No entanto, essa questão é polêmica, em parte porque as leis de propriedade industrial não estabelecem critérios claros para fazer essa distinção. Além disso, alguns argumentam que nem todos os licenciantes devem ser tratados da mesma forma, porque entre eles existem empresas inovadoras que investem significativamente em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e dependem dos royalties para financiar essas atividades. Por outro lado, há empresas que não realizam atividades de P&D e adquirem patentes essenciais, principalmente com o objetivo de obter royalties, sem um compromisso significativo com o desenvolvimento contínuo da tecnologia padrão.
Do ponto de vista das empresas que implementam as tecnologias, surge a dificuldade de aceitar os termos de licenciamento propostos pelo titular das patentes. Isso ocorre porque os contratos de licenciamento firmados pelo titular com outros implementadores em diferentes países são confidenciais. Como resultado, novos potenciais licenciados enfrentam desafios ao avaliar se os termos oferecidos a eles são verdadeiramente justos, razoáveis e não discriminatórios em comparação com os termos obtidos por seus concorrentes.
Te recomendamos: Online brand protection: a estratégia das empresas para defender a propriedade intelectual
Segundo os especialistas ouvidos pela LexLatin, a proteção das patentes essenciais resulta em efeitos pró-competitivos que beneficiam os consumidores e, portanto, é algo que deve ser incentivado. Ao permitir que produtos de diferentes empresas operem em conjunto, a existência de padrões e patentes fundamentais incentiva a entrada de novos concorrentes no mercado. Isso, por sua vez, leva a economias de escala globais (algo que o Brasil almeja), maior concorrência e uma maior oferta de produtos, resultando em uma redução de custos para os consumidores.
“O Brasil deve estar atento à sua capacidade inovadora, avaliando a maturidade das indústrias locais em relação à adoção de padrões e patentes essenciais. Políticas públicas que incentivem a inovação e a proteção à propriedade intelectual são vitais para impulsionar o progresso nessa área”, avalia Ana Carolina Camino Moreira.
“É igualmente vital incentivar o diálogo entre todos os envolvidos, como inventores, empresas e órgãos reguladores, para criar um ambiente que ajude tanto a inovação quanto o consumidor. Também é fundamental estimular novos inventores, pois isso contribui diretamente para o avanço da sociedade. Com mais inovações, temos acesso a uma gama ampliada de tecnologias, produtos e serviços que tornam nosso dia a dia mais prático e enriquecedor”, afirma Mozar Carvalho.
“A proteção adequada e tempestiva dos direitos de patentes traz segurança jurídica para empresas inovadoras e estimula, portanto, novas invenções, na medida em que esses titulares podem recuperar parte de seus investimentos por meio do recebimento de royalties pelo licenciamento de tecnologia e, assim, continuarem investindo para desenvolver novas soluções", analisa Viviane Trojan.
Add new comment